A crise vista por José Pacheco Pereira
Há muito que José Pacheco
Pereira tem dito e escrito sobre esta crise que vem assolando a Europa desde
2008, mas parece que a sociedade ou pelo menos parte dela, gosta de atirar as
culpas ao engenheiro Sócrates. Eu sou suspeito na minha opinião, porque
tenho simpatia pelo engenheiro, mas
Pacheco Pereira não: até porque é
militante do PSD, partido que não partilho ideias, pelo menos estas de
governação actual, mas muito menos partilho as ideias dos imberbes que nos governam,
que não passam de uma cambada de fracassados e incompetentes naquilo que fazem.
Como não estou devidamente
documentado, mas que sei que Pacheco Pereira está, além de ser um homem muito
atento a tudo o que se passa à nossa
volta, tem outra capacidade de expor as ideias através da escrita, aproveito e
partilho o seu texto, publicado no jornal Público.
Prefere cair
por um precipício ou afundar-se em areias movediças?
José Pacheco
Pereira
27/12/2014 - 05:45
Com ideias simplistas e erradas,
e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da ignorância, vamos pagar muito caro,
estamos a pagar muito caro.
A bancarrota de Sócrates, que
existiu mesmo, with a little help from my friend Passos Coelho, foi o
equivalente a deitar Portugal por uma ravina abaixo, o “ajustamento” de Passos
é o equivalente a atirar Portugal para um pântano de areias movediças. Os dois
são momentos complementares da mesma crise social, cultural, económica e
política que assola o país desde 2008, e que é, em parte, um reflexo de uma
crise europeia mais vasta. Em parte, mas não só.
Há componentes nacionais que nos
caíram em má sorte, e que têm a ver com uma conjugação muito especial de
incompetência, ideias erradas, superstições e dolo. No dia em que se fizer uma
verdadeira história destes últimos seis anos, só colocar o que cada um dos
protagonistas pensava, disse ou fez numa sequência cronológica correcta
mostrará como se foram destruindo todas as oportunidades, afunilando o caminho
e tentando secar com zelo todas as alternativas. O problema é que essa tarefa
de criar o deserto à volta teve eficácia, porque a política da terra queimada
tem efeitos destrutivos e diminui de facto as opções dos que a ela sobrevivem.
Tenho insistido nesta questão da
cronologia rigorosa, até porque ela nos ensina muitas coisas sobre como é que
evoluiu o processo nestes seis anos de lixo e, por isso, altera a nossa
percepção sobre as relações de causa e efeito. Não é uma tarefa que possa ser
feita apenas puxando pela memória, porque a poluição do que aconteceu por
interpretações políticas a posteriori é grande. Mas, se colocarmos toda uma
série de perguntas e formos atrás ver as respostas, ficamos muitas vezes
surpreendidos pela capacidade que tem o discurso do poder, em conjunto com a
perda de memória que os media trazem à sociedade, para “moldar” o passado às
conveniências do presente.
Quando é que a crise financeira
dos activos tóxicos e do Lehman Brothers se tornou numa crise das dívidas
soberanas? E porquê? Que papel teve a decisão puramente política da Alemanha,
diante de uma Europa enfraquecida e tonta, na abertura da frente das dívidas
soberanas, as mesmas que tinha ajudado a agravar com as decisões keynesianas da
resposta inicial à crise financeira? Todo. Podia não ter havido crise das
dívidas soberanas, mesmo com as dívidas em crise profunda. A crise das dívidas
soberanas foi uma opção política alemã e teve um papel fundamental em “soltar”
a Alemanha do directório com a França e deixá-la isolada no mando da Europa. A
crise económica, de 2008 em diante, foi um instrumento fundamental no plano
político para acabar com a União Europeia como a conhecíamos e dar origem a uma
“união” de hegemonia alemã.
Que papel teve a chanceler alemã
em apontar a Grécia como “culpada”, abrindo caminho para a categoria maldita
dos PIG, e colocando-se no centro de uma política claramente punitiva que,
entre outras coisas, destruiu o pouco que sobrava da política de coesão, a
favor de uma projecção europeia das políticas do Bundesbank? Todo. Há quanto
tempo se sabia que as contas gregas eram falsificadas e que a entrada do dracma
no euro tinha sido prematura? Só em 2011? Deixem-me rir.
Quando é que Portugal passou a
PIG e deixou de ter a protecção alemã para as suas dificuldades económicas?
Depois do chumbo do PEC IV e não antes. Aliás, o PEC IV foi um plano alemão de
austeridade negociado com o Governo Sócrates e o seu chumbo provocou a ira de
Merkel, cuja primeira intervenção depois da queda do plano na Assembleia foi
uma bofetada pública furiosa em Passos Coelho. Portugal entrou então na
categoria dos PIG e muito do que hoje a propaganda do PSD e do CDS diz sobre
como Portugal estava nas ruas da amargura do prestígio europeu refere-se ao
pós-PEC IV e não antes. A crise dos juros acompanhou este processo de crise
governativa, com a queda do Governo Sócrates e a preparação do memorando em
simultâneo.
Como é que foi possível ao PS e
ao PSD terem aprovado o memorando de entendimento em Maio de 2011 e fazerem as
promessas eleitorais que fizeram nas eleições de Junho? Sim, porque o memorando
é anterior às eleições e não posterior. E se o PSD sabia muito bem o que tinha
assinado em Maio, como é que não o “compreendeu” em Junho de forma a evitar as
promessas taxativas que fez em campanha eleitoral? Mais: como é que, se
projectarmos para trás, o que hoje PSD e CDS dizem da bancarrota de 2011 e do
significado do memorando foi possível conduzir umas eleições pós-memorando com
aquela linguagem? Mais: como foi possível anunciar, também à luz do discurso
dos dias de hoje, como medida única de austeridade, o corte “apenas naquele
ano” de metade do subsídio de Natal, a medida que bastava? E onde estão os
resultados das múltiplas promessas, algumas já vindas dos governos Sócrates,
feitas para “adoçar” o corte, o chamado Programa de Emergência Social, que
implicava um programa nacional de microcrédito, um mercado social de
arrendamento, um programa nacional de literacia financeira, o reforço de
escolas em bairros problemáticos, um banco de medicamentos e um banco
farmacêutico, os tele-alarmes, um programa Rampa, o descanso do cuidador, um
banco ideias, etc., etc., etc., etc.? Se nestes anos coleccionarmos os títulos
pomposos de programas sobre programas, anunciados com espavento e depois os
espremermos, quase nada sobra.
Aliás, ler os jornais de há pouco
mais de dois, três anos, seria ridículo se não fosse muito sério. Podia fazer
todo este artigo e ainda ocupar uma parte importante deste jornal só com os
títulos pomposos de programas sobre programas, todos impantes nas suas
maiúsculas, e nos quais, nem que seja durante uns meses, se gastou tempo e
dinheiro e se colocaram pessoas, sem resultados práticos. Não é originalidade
deste Governo, mas pelo contrário uma prática bem sólida do desperdício
governamental, as chamadas “gorduras do Estado”. Mas era suposto este fazer
diferente. Aliás, não é por acaso que pelo menos na construção de portais, páginas
da Rede e outros serviços, muitos deles que duram muito pouco e ficam
indisponíveis, se alimentou um conjunto de pseudo-empresas encostadas às
“jotas”, que se movem nestes meandros ministeriais como peixe na água.
E estamos apenas em 2011, antes
do grande susto orçamental que veio com a incapacidade do divino Gaspar de
controlar o Orçamento e que levou ao “enorme aumento de impostos” e ao contínuo
assalto a salários, pensões e reformas. Ou seja, este Governo não chegou ao
poder para aplicar a austeridade pós-memorando, e assim “salvar o país”, mas
sim para fazer uma política menos dura do que a dos últimos meses de Sócrates e
só descobriu a “realidade”, como eles gostam de lhe chamar, depois. Maldita
cronologia!
Alguém pensa que este modelo
atamancado em 2011-2, assente acima de tudo no “gigantesco aumento de
impostos”, pode subsistir sem esses impostos? A herança de Sócrates foi um
Tesouro vazio que dava para três meses, a herança de Passos Coelho é um
“ajustamento” que só tem efeitos porque depende de um enorme assalto fiscal.
Não existe “ajustamento” à Passos Coelho sem impostos elevadíssimos, centrados
no trabalho e no consumo. Sem esses impostos tudo vem abaixo como um castelo de
cartas, porque nenhuma transformação estrutural foi feita nem na economia
portuguesa, nem no Estado. E as que foram feitas na sociedade, principalmente o
empobrecimento selectivo da classe média, são todas inibitórias de qualquer
genuíno crescimento.
O país foi gerido como o jogo de
SimCity – primeiro gastou-se de mais, depois empobreceu-se de mais. Primeiro, o
mayor virtual encheu a cidade de quartéis de bombeiros e esquadras da polícia,
parques e circos ambulantes, com os índices de popularidade a aumentar. Depois
veio a bancarrota e o novo mayor inverteu a receita, desatou a aumentar os
impostos, cortou os serviços públicos. A cidade do SimCity começou a cair aos
bocados, os incêndios a aumentarem, o crime alastrando, as pessoas a emigrarem.
Não são duas políticas distintas, são duas faces da mesma política, uma o espelho
da outra, ambas com efeitos perversos desastrosos para o país.
Pensam que houve muito mais
sofisticação do que a que é preciso para “jogar” SimCity? Não, foi mesmo assim,
com ideias simplistas e erradas, e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da
ignorância. Vamos pagar muito caro, estamos a pagar muito caro. Querem morrer
rapidamente ou ficar muito feridos, caindo por uma ribanceira ou enterrando-se
num pantanal?
http://www.publico.pt/politica/noticia/prefere-cair-por-um-precipicio-ou-afundarse-em-areias-movedicas-1680566?page=-1
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